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terça-feira, 26 de outubro de 2010

A morte de uma doença

Fonte: Veja, 27/10/2010, pág. 126


O vírus da peste bovina, que há séculos devasta rebanhos, é o segundo que a humanidade consegue eliminar da face do planeta. O primeiro foi o da varíola. Essa vitória mostra como é difícil combater esses agentes infecciosos


Trinta anos atrás, a erradicação da varíola, doença que se acredita ter matado 300 milhões de pessoas através dos séculos, foi uma grande vitória da medicina. Pela primeira vez na história se conseguiu extinguir um vírus em escala global. Há duas semanas, a FAO, órgão das Nações Unidas que cuida da agricultura e da alimentação, reuniu sua cúpula em Roma para comunicar ao mundo uma grande notícia: um segundo vírus letal foi eliminado da face do planeta o agente transmissor da rinderpest, que no Brasil se chama peste bovina. Há registros de morte de animais pela peste bovina desde o antigo Egito, mas foi a partir do século XVIII que ela passou a matar bois, vacas e búfalos aos milhões e se tornou um enorme desafio para a veterinária. O vírus não afeta os seres humanos, mas a devastação dos rebanhos, sim, causando mortes em massa, pela fome, nas regiões mais pobres do mundo. De acordo com cifras da FAO, no fim do século XIX, um terço da população da Etiópia morreu em consequência da falta de alimento causada pela perda de 95% do rebanho do país, aniquilado pela peste bovina. O vírus, que se desenvolve no sistema respiratório dos animais, é facilmente transmitido pela saliva e pelas fezes. Sua taxa de mortalidade é de 80% - maior ainda que a da varíola.


O último grande surto de peste bovina ocorreu no Quênia, em 2001. Desde então não há registro de sequer uma rês morta pela doença. Segundo critérios adotados internacionalmente, quando uma doença não se manifesta no mundo num prazo de dez anos, é considerada erradicada. A vacina contra a peste bovina foi criada em 1957, mas seu uso ficava a critério do governo de cada país, e, dessa forma, a doença sempre surgia em algum quadrante. Em 1994, a ONU mapeou as regiões mais sujeitas à incidência da peste e lançou um amplo programa visando à imunização dos rebanhos, cujo resultado aparece agora.


O vírus da rinderpest é um dos mais antigos de que se tem registro. Acredita-se que seja originário da Ásia e tenha se espalhado para outros continentes pela migração de animais na pré-história. Na idade moderna, disseminou-se por meio da importação de gado bovino. No século XVIII, o gado infectado foi usado como arma de guerra pelos holandeses, para propagar a peste na Inglaterra. No início daquele século, a peste bovina era um problema tão grande na Europa que o papa Clemente XI convocou o médico italiano Giovanni Maria Lancisi para tentar conter seu avanço. Lancisi sugeriu que os animais fossem isolados, abatidos e enterrados sob cal. A primeira faculdade de veterinária foi criada na França, em 1761, justamente para estudar o vírus bovino e transmitir as lições de Lancisi.


O vírus bovino nunca causou grandes devastações nas Américas. Há registros de animais contaminados no Brasil, nos anos 20 do século passado, mas que não resultaram em epidemia. "Historicamente, a difusão da doença esteve sempre relacionada à guerra e à migração de animais. Como o Brasil nunca teve grande participação em guerras mundiais e está muito longe da Ásia, da África e da Europa, onde a presença da rinderpest foi intensa, conseguiu combatê-la facilmente", disse a VEJA o biólogo Michael Baron, do Instituto de Saúde Animal do Reino Unido, referência da FAO no combate à peste bovina.


A extinção de apenas dois vírus, em toda a história da humanidade, mostra o tamanho do desafio que esses agentes infecciosos representam para a ciência. Os vírus são formados por um punhado de material genético envolto por uma cápsula proteica. Muitos cientistas nem os consideram seres vivos por não possuírem sequer uma célula. Precisam se apropriar de células de animais para se replicar. Ao consegui-lo, escravizam células, alterando suas informações genéticas e obrigando-as a produzir novos clones virais. A maior dificuldade em combater os vírus é que eles são, por natureza, mutantes. É impossível prever que transformações vão advir da combinação de seu material genético com o de seus hospedeiros. Também não se pode prever se as mutações nos vírus produzirão cepas mais ou menos agressivas que as anteriores. Além disso, quando os vírus ocupam uma célula a dominam de tal forma que é muito difícil combatê-los sem prejudicar a célula hospedeira. Esse é o motivo pelo qual a ciência ainda não conseguiu criar remédios contra os vírus tão eficazes quanto os antibióticos no combate às bactérias. A partir de agora, os vírus da peste bovina terão o mesmo destino que os da varíola: alguns poucos exemplares serão congelados em laboratório para futuros estudos. "Existe ainda uma série de questões a que a ciência precisa responder sobre o agente da rinderpest. Uma delas é por que as pessoas não são infectadas pela peste bovina e o gado não é infectado pelo sarampo, já que os respectivos vírus são extremamente parecidos", diz o biólogo Michael Baron. Por enquanto, a vitória é ter livrado os rebanhos de sua peste ancestral.

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